segunda-feira, 25 de abril de 2011

O Apartamento


Aquele setembro nublado reservava mistérios na cabeça do Jorge. A passagem do inverno para a primavera trazia aquele frio que nas manhãs de domingo ao tentar tirar forças para acordar já era o maior dos sacrifícios.

Porém as necessidades de qualquer ser humano não podem esperar e ele levantou-se, pegou seu roupão para aproveitar e tomar banho e foi a passos preguiçosos até o banheiro. Azulejos portugueses, o chão de piso frio e a banheira da década de 40 enfeitavam aquele apartamentinho de centrão aconchegante enquanto a ópera de Maria Callas era a trilha sonora em contraste ao samba, sertanejo e emo rock dos rádios dos vizinhos.

A água quente caía pelo chuveiro e a janela pequena com vista para a rua não iluminava bem aquele banheiro, mesmo porque aquele céu cinzento muitas vezes poderia confundir o dia com a noite. Repentinamente, algo observava de longe aquele banho de Jorge, e ele só percebeu quando o disco silenciou-se para trocar de faixa.

Uma piscada de olhos e ele notou alguém vestido de preto observando atentamente aquela janela do sexto andar. Seria um corvo se o rapaz não se prestasse a fazer o mesmo e a olhar também. Dois olhares mirados um no outro.

Morar em prédios velhos no centro de São Paulo é implorar para a própria imagem alimentar o lado voyeur alheio – nos momentos íntimos só ou com alguém. Aquele jogo ficava mais excitante porque Jorge não conseguia identificar como era a persona que o mirava. Ele mesmo já abriu a porta do seu apartamento para outros estranhos na mesma situação. A diferença era que ele podia observar o quão atraente a outra pessoa poderia ser, o que dessa vez ficava difícil pelas poucas horas de sono, a manhã nublada e o resquício de embriaguez daquele uísque da noite anterior.

Cansado daquele jogo, Jorge resolveu dar ouvidos a voz da tentação e da curiosidade e veste-se sem se agasalhar e desce de escadas – assim mesmo – até a entrada do prédio. Ao passar pela portaria, nota que há uma correspondência em seu nome. Domingo de manhã não é dia do carteiro passar. Com um olho na carta e o outro em quem estava a lhe observar, Jorge abre o envelope e encontra um dvd daqueles que compramos para gravar alguma coisa em casa. Com o envelope nas mãos e agora com a dúvida de que ou quem seria seu “admirador secreto”, ele se assusta quando sua aproximação com o ponto preto já deixava claro que aquele este era um manequim de loja de shopping vestindo negro. Incrédulo o rapaz olha para a roupa e ao redor e não havia ninguém. O silêncio sepulcral contradizia os escândalos daquela rua que nas noites de finais de semana virava um bordel a céu aberto. Não agüentando mais esperar para ver o que havia naquele disco e de olhar para aquele traje de festa “high society”, ele despe o manequim e sobe de elevador. E o manequim ficou lá, com aquela cabeça mirando para cima, como se fosse a figura mais blasé do mundo da moda. E o elevador se posiciona entre o quinto e o sexto andar, quando o mesmo para.

Ao olhar para o teto do quinto andar, não viu coisa alguma. O coração palpitava mais rápido. No chão do sexto, um sapato preto que saiu em disparada na direção do seu apartamento. Jorge gritava pedindo socorro. Quando deitou-se para chorar em desespero, o elevador sobe e ele finalmente se abre para ele sair e voltar para o apartamento. Nunca ele levou tão pouco tempo entre a porta do elevador e a entrada do seu “apê”.

A passagem pela cozinha estava intocável, bem como a sala que a seguia. A janela aberta...
Jorge para e olha para baixo e uma rajada de vento frio e o cd da Maria Callas que terminava naquele momento parafraseava o fim da linha para aquela alma que se propusera a se lançar num vôo sem asas em direção ao leito de morte. E todas as lembranças dos anos no apartamento entravam na cabeça de Jorge, que completamente atônito não teve escolha e ficou sem reação.

Por longos vinte minutos ficou lá, somente ele, o vento e o cadáver estirado no chão. Sem nenhum sinal da polícia, ambulância ou qualquer outro passante pela rua do centro de São Paulo. Jorge não queria mais acreditar naquilo e já impotente para tentar trazer a vida daquele suicida de volta, fecha a porta com chave e as duas trancas (uma em cima e outra embaixo), respira fundo e liga a tv e o dvd.

O disco abre com uma tela preta e sem opção nenhuma de menu. Poucos segundos depois, flashes de suas aventuras sexuais, escândalos e as luxúrias mais condenáveis estavam diante dos olhos de Jorge.

“Bata-me com força, seu cavalo”, dizia alguém naquela fanfarra sexual e Jorge dizia que poderia bater ainda mais e humilhar aqueles que participavam da orgia.

E Jorge disse no seu maior surto de loucura para aquelas vozes calarem a boca.

Porém seus olhos lacrimejando eram o espelho daquelas imagens e quando a mente não suportou tamanha perturbação mental, uma imagem de orgasmo e a seguir a tela fica em branco congelada com um texto em negrito:

“Seus sonhos eróticos me fizeram voar alto, vou dormir feliz hoje”.

Logo, a tela mesclando branco, preto e cinza entrou em chuviscos...